A vida invisível de Eurídice Gusmão - Martha Batalha

Resenha Livro A vida invisível de Eurídice Gusmão

Preciso dizer que esta foi uma das minhas melhores leituras de 2016. Meu interesse por ler mais histórias que evidenciam o protagonismo feminino só tem crescido e após tomar conhecimento da existência desta obra fiquei muito interessada e curiosa em descobrir mais sobre a narrativa.

A vida invisível de Eurídice Gusmão é a obra de estreia da escritora Martha Batalha que nasceu em Recife (uhuuul!), mas cresceu na Tijuca, Rio de Janeiro. Este romance foi publicado primeiro fora do Brasil e já tem seus direitos vendidos para o cinema.

O enredo do livro diz respeito à trajetória de vida das irmãs Eurídice e Guida Gusmão. Ambas viviam com os pais, d. Ana e Manuel, no Rio de Janeiro dos anos 1940. Eurídice e Guida eram bem diferentes, porém muito ligadas uma à outra. Seus destinos, como os da maioria das mulheres do seu tempo, estavam previamente traçados, com base no que a sociedade impunha e a família acatava: fazer um bom casamento, ter filhos e viver para o lar. Mas será mesmo este o destino dessas duas jovens mulheres? Seriam estes seus projetos de vida?

Uma mudança brusca surpreende a família Gusmão: a filha mais velha, Guida, desaparece misteriosamente, sem deixar vestígios. Como se deu e a razão deste desaparecimento só saberemos quase na metade do livro. O que acompanhamos desde o início da leitura é a consequência deste acontecimento, ou seja, como tudo isto afeta social e emocionalmente toda a família Gusmão, sobretudo a Eurídice.

As notícias nunca chegaram, e deixaram de ser esperadas. Agora seu Manuel e d. Ana já não choravam, e nunca mais riram. Ver os pais tão vulneráveis fez Eurídice querer protege-los. [...] Nunca, nunquinha ia se exilar da família, como fez Guida. Nunca, nunquinha ia fazer algo que lhes trouxesse desgosto. Ela ia ser a melhor filha de todas, a menina exemplar, mesmo se essa menina exemplar estivesse em profunda sintonia com A Parte de Eurídice Que Não Queria Que Eurídice Fosse Eurídice.

Eurídice se casou com o jovem Antenor, teve dois filhos e sua vida resumia-se aos cuidados com a casa e as crianças, além de aguentar as desconfianças, desdém e até mesmo ofensas do seu marido. Ela também tinha sonhos. Invisíveis.

Porque Eurídice, vejam vocês, era uma mulher brilhante. Se lhe dessem cálculos elaborados ela projetaria pontes. Se lhe dessem um laboratório ela inventaria vacinas. Se lhe dessem páginas brancas ela escreveria clássicos. Mas o que lhe deram foram cuecas sujas, que Eurídice lavou muito rápido e muito bem, sentando-se em seguida no sofá, olhando as unhas e pensando no que deveria pensar.


A vida de casada e mãe, não era suficiente para esta mulher inteligente e inventiva. Ela precisava dar sentido à sua existência, manter-se viva. É a partir daí que Eurídice, que trazia com ela muitos talentos, começa a busca por sua realização pessoal.

Eurídice jamais seria uma engenheira, nunca poria os pés num laboratório e não ousaria escrever versos, mas essa mulher se dedicou à única atividade permitida que tinha um certo quê de engenharia, ciência e poesia.

Resenha Livro A vida invisível de Eurídice Gusmão

Mesmo com as limitações que lhes eram impostas, lá estava ela tentando dar sentido à sua vida. Pôr em prática sua inteligência e fazer valer sua capacidade criadora eram formas de tornar-se mais feliz e realizada. Primeiro veio a culinária, depois o corte e costura. Entre uma e outra atividade, o desdém e a proibição de Antenor. Além das fofocas da vizinhança falastrona.

Nunca teve tanta raiva, Antenor. Só não jogou a máquina Singer, neguinha e tabua pela janela porque estava preocupado com o que os outros iam dizer. E era também por estar preocupado com o que iam dizer que não queria que sua mulher costurasse para fora. Iam achar que ele era homem de menos porque a sua mulher trabalhava demais.


Uma sociedade baseada em aparências, permeada de padrões impostos e preconceitos tolhia as mulheres de decidirem seus destinos. Este romance poderia ser um clichê sobre a submissão da mulher nos anos 40, mas para mim mostra a capacidade que essas mulheres tinham de sobreviver, de encarar a vida e a fazer valer a pena. Conhecemos mais profundamente a história de Eurídice, depois mergulhamos no que a vida reservou à Guida, sua irmã. Mulheres que tomaram decisões, voltaram atrás em algumas delas, mas não perderam completamente a capacidade de se reinventar.

Anos e anos sentando-se no mesmo lugar, encarando o vazio na forma de estante. Ou talvez tenha sido porque tinha que ser. O fato é que nessa nova temporada de olhares perdidos Eurídice começou a se sentir diferente. Era uma sensação bastante leve no começo, quase como uma cosquinha. Percebeu que a sensação só aparecia quando ela estava sentada no mesmo lugar, olhando para o mesmo ponto.

Eurídice, mesmo com uma sociedade e um casamento que a castrava, conseguiu se encontrar. Apesar de aspectos da sua vida familiar que explicam a razão de abrir mão dos seus desejos, apesar das frustrações pessoais e profissionais que precisou enfrentar e da sua “invisibilidade”, ela conseguiu se encontrar. Eurídice descobriu um mundo, ela se descobriu neste mundo que a salvou.

Além das irmãs Gusmão e suas desventuras, acompanhamos também personagens secundárias fascinantes, como a fofoqueira Zélia e o seu pai Álvaro, Filomena, uma ex prostituta, que passa a ganhar a vida cuidando de crianças do bairro onde vivia e o solteirão Antônio e sua mãe d. Eulália. Todos os personagens são bem desenvolvidos e trazem características bem marcantes.

O livro é narrado em terceira pessoa, tem 188 páginas com quatorze capítulos de uma narrativa muito bem escrita. Não só pela história e seus personagens, mas pela construção de um texto inteligente, com um ritmo que estimula e encanta o leitor. A escolha do título foi certeira, pois é carregado de muito sentido do que vamos apreciar ao abrir e mergulhar nesta narrativa.

A capa é linda, desde a escolha das cores e da ilustração. A imagem dessa mulher sem rosto é bem representativa, pois as histórias de Eurídice e Guida poderiam ser a de qualquer uma de nossas mães, avós, bisavós... O enredo contribui para tornar esta uma obra capaz de nos arrancar sorrisos, mas instigar reflexões importantes relacionadas ao papel da mulher numa sociedade machista, cheia de preconceitos e injustiças.

Acredito que já ficou claro o quanto me encantou ler este livro. Apesar dos dramas que permeiam a vida desses personagens, esta é uma história contada de maneira bem humorada, com certa ironia, mas que permite ao leitor refletir e se emocionar. Espero que Martha Batalha continue nos presenteando com tão boas histórias quanto essa.

Resenha Livro A vida invisível de Eurídice Gusmão

A vida invisível de Eurídice Gusmão - Martha Batalha
Companhia das Letras
188 páginas
Livro cedido pela editora
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6 comentários

  1. Apesar da resenha ser bem escrita e representar bem o livro, não gostei da história. Não sei o que faltou mas não senti interesse em ler.

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  2. Cristiana!
    Bom ver uma conterrânea Recifense se destacar em sua primeira obra escrita.
    Adorei o plot do livro, ainda mais que mostra a realidade de muitas mulheres, principalmente aqui no nordeste, os homens ainda são bem machistas e acham que as mulheres tem de ser apenas donas de casa, cuidar dos filhos e ainda aguentar desaforo e muita agressão... Nem dá para crer!
    Sucesso para escritora e que venham mais bons livros.
    “Volta teu rosto sempre na direção do sol, e então, as sombras ficarão para trás.” (Sabedoria oriental)
    cheirinhos
    Rudy
    http://rudynalva-alegriadevivereamaroquebom.blogspot.com.br/
    TOP Comentarista de JANEIRO dos nacionais, livros + BRINDES e 3 ganhadores, participem!

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  3. Cristiana, logo lendo sua resenha pensei que se tratava de uma biografia kk.
    Me interessei bastante pelo livros, anos 40 onde a mulher só era para ser bela, recatada e do lar, e chegou a Eurídice, mudando tudo.
    Com um enredo desse não acredito que as editoras brasileiras recusaram esse livro, agora vemos que até no exterior os livros nacionais são mais prestigiados do que dentro do nosso país.

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  4. AI MEU DEUS QUERO
    Amo ver o quanto o protagonismo feminino está se expandindo, muuuuito legal que a autora tenha lançado o livro no exterior e que ele virará um filme!
    Sobre a história, está cada vez mais comum (ainda bem!) mulheres que não se conformam com a vida que a sociedade tenta enfiar goela abaixo. Amei! Vou colocar na minha lista.

    Beijos,
    Kemmy - Duas Leitoras

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  5. Eu gosto muito de ler livros que envolvem personagens femininas fortes e que lutam pra tomar o seu espaço.
    O livro me pareceu com uma histórias dessas que eu gosto, e ainda mais sendo um livro reflexivo que nos levam a pensar mais do que o que está escrito.
    Quero ler !

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  6. Pensei que esse livro fosse mais grosso, mas não, são só 188 páginas, dá pra ler em duas horinhas.
    Fiquei curiosa para saber sobre esse desaparecimento repentino e mais ainda para saber um pouquinho mais sobre a vida de Eurídice e como ela supera tudo e descobre a si mesma.

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